Bárbara Morselli Cavallo, 28 anos, não sabia que fazia história ao preencher a ficha de cadastro e ser aprovada no concurso da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR). Ela é a primeira defensora pública declaradamente não-binária do Brasil, ou seja, publicamente não se identifica estritamente nem com o gênero feminino, nem com o gênero masculino. Cavallo começará efetivamente a atuar em junho, assim como outros 16 defensores(as) que entraram na DPE-PR em abril por meio do lV concurso. Ela nasceu em Bocaina, interior de São Paulo, e morava em Ribeirão Preto antes de se mudar para Curitiba.
“Minha jornada enquanto pessoa não-binária está só começando, e me sinto muito honrada de poder fazer parte da Defensoria Pública do Paraná. Eu imagino que não existe nenhuma outra instituição tão apta quanto a Defensoria para permitir que eu explore isso, no meu âmbito pessoal e profissional, sobretudo em relação à população destinatária do nosso serviço. Eu entendo que é importante discutirmos aqui acesso à Justiça para pessoas não-binárias e pessoas trans, tanto em termos de conscientização sobre os direitos da população quanto pensando em levar informação para a sociedade em geral. Temos que fazer essa defesa, afirmar que a identidade de gênero não é um problema, é uma solução. Uma solução para que as pessoas vivam mais confortáveis”, conta a defensora pública.
A inscrição de Cavallo no concurso da DPE-PR foi o primeiro documento em que constou a informação sobre sua não-binariedade. Ela explica que começou a ter mais contato com esse conceito entre 2021 e 2022, justamente quando se preparava para as provas da Defensoria Pública. Ela é casada com uma mulher desde o ano passado. No entanto, em suas palavras, seguia um padrão comportamental “muito feminino” antes de aderir à não-binariedade.
“Eu estava em paz com a minha sexualidade, mas ao mesmo tempo eu sentia a necessidade de compensar o fato de eu ser bissexual. Eu sentia que eu precisava ser mais vaidosa, mais parecida com as meninas, como um mecanismo de compensação. Eu fiz muito uso de trejeitos, vestimentas e maquiagens tipicamente associados na nossa sociedade ao comportamento feminino. E eu achava que era feliz assim”, relembra ela.
Representatividade
A história da futura defensora mudou com a série de televisão norte-americana Grey’s Anatomy. Em 2021, o seriado trouxe a primeira personagem não-binária da obra, interpretada também por uma pessoa não-binária. “Eu nunca tinha visto alguém falar sobre esse tema daquela forma. Durante a pandemia, ficando em casa durante muito tempo, eu comecei a repensar alguns padrões de conforto que eu tinha em relação ao meu corpo. O primeiro passo foi raspar o cabelo, e eu chorei em frente ao espelho quando cortei, e chorei de novo quando usei roupa masculina e fui confundida com um garoto na rua. Percebi que gostava da sensação de causar estranheza, mas só fui entender o que era mesmo com a série, com uma personagem descrevendo sentimentos que eu nem sabia que tinha”, explica Cavallo.
Essa trajetória pessoal se conectou com sua atuação em prol dos direitos da população LGBTQIA+ e, agora, com o trabalho na DPE-PR. Para ela, sua experiência de vida reforça a importância do lazer e do entretenimento, direitos fundamentais, como instrumentos de conscientização e representatividade.
“Foi por meio da arte que eu tive acesso a esse sentimento, que eu pude materializar essa ideia em mim. Por isso, nós devemos garantir cada vez mais informação de qualidade sobre identidade de gênero, é dessa forma que mais pessoas poderão ficar em paz com a sua própria sexualidade”, destaca ela.
Atuação na Defensoria
O direito à informação de qualidade, que a defensora considera intimamente ligado aos direitos da liberdade de expressão e da autonomia, impactam na forma como ela enxerga o papel da Defensoria na educação em direitos. Antes de ser chamada para a instituição paranaense, Cavallo teve experiências na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, primeiro em estágio de graduação e, após se formar em Direito, em estágio de pós-graduação. “Foi no trabalho de proteção dos direitos de crianças e adolescentes que eu me encontrei. Acredito muito no poder da educação, e a Defensoria Pública pode ajudar nesse processo também”, ressalta Cavallo.
No momento, ela não sente necessidade de retificar o prenome e o gênero nos documentos pessoais, mas não descarta essa possibilidade no futuro. “Para mim, foi muito bom informar no cadastro da Defensoria a minha identidade não-binária e me sentir muito acolhida. Perceber que existe espaço dentro da instituição para que eu explore esse meu lado. Não vejo a hora de poder colocar em prática todos esses anos de estudo e meus conhecimentos de vida. Quero aprender muito com meus colegas e os usuários da Defensoria, e poder levar acesso a todos os direitos que estão relacionados intimamente com a felicidade. Sou muito mais feliz depois que eu entendi a minha identidade de gênero, e eu desejo isso para todo mundo”, conclui a defensora.