Mais um 20 de novembro passou. A imprensa foi pautada, os negros ganharam destaque, mas muito se perde enquanto “esquerda” e “direita” se digladiam num polarizado Fla-Flu, potencializado pelos algoritmos das plataformas de redes sociais. Mas quando teremos respostas práticas?
Entre as notícias que se destacaram nesta semana está o pedido formal de desculpas que o Estado Brasileiro fez aos descendentes dos escravizados. Este pedido de desculpas não foi espontâneo, nem iniciativa do Estado; foi graças à provocação feita pela EducAfro, a partir de um relatório técnico elaborado por juristas e historiadores, e por uma ação civil pública capitaneada pelo advogado Irapuã Santana. Tivemos acesso ao relatório e à peça da ação e, com isso, a certeza: o Brasil é um país que não olha no espelho.
Se o dia 13 de maio de 1888 foi a festa, o dia 14 foi o da ressaca, que nunca passou direito. A igualdade racial no Brasil é uma promessa jamais cumprida. Os escravizados ganharam a liberdade no papel, mas as letras miúdas legaram uma cidadania de segunda classe: sem terra, sem acesso à educação e sem representação política. O Estado brasileiro perpetuou um “apartheid” silencioso, em que a cor da pele e o CEP em que a pessoa nasceu predeterminam oportunidades, salários e, muitas vezes, até a expectativa de vida.
O Estado, através da gestão pública, deveria ser o motor das mudanças, mas o racismo se disfarça de inércia, burocracia e ausência de políticas efetivas. Pior: o Estado brasileiro sempre aprofundou as desigualdades, e o relatório da EducAfro é certeiro na análise pós-independência sobre como as estruturas sociais e governamentais foram construídas com estas intenções. Até hoje a população negra é sub-representada nos espaços de poder e comando, enquanto é super-representada nas cadeias, nos subempregos e nos índices de violência letal. Os números são cristalinos: negros representam 56% da população brasileira e mais de 70% dos mais pobres.
É preciso abandonar o mito da “igualdade de oportunidades”. Numa sociedade em que o ponto de partida é tão desigual, neutralidade não é justiça — é conivência. As cotas raciais, apesar dos avanços, ainda são insuficientes. A gestão pública deve expandir essas políticas para além da educação, garantindo a presença negra em espaços de decisão, como concursos públicos, cargos de liderança e fundos de financiamento para empreendedores negros.
Como podemos falar de igualdade racial quando os negros não ocupam sequer os espaços onde as decisões são tomadas? Menos de 5% dos parlamentares brasileiros se declaram negros. Nos altos escalões do Executivo e do Judiciário, a presença é ainda mais rara. Sem vozes que reflitam a realidade da maioria, a gestão pública se limita a remediar problemas que não entende. A política precisa abrir as portas para lideranças negras e oferecer as condições para que essas vozes tenham impacto real. Isso significa repensar o financiamento de campanhas, fortalecer partidos comprometidos com a diversidade e garantir que as políticas públicas não sejam desenhadas a partir de uma perspectiva elitista e excludente.
Transparência e accountability são essenciais para romper com a ideia de que políticas de reparação são um peso para o Estado, quando, na verdade, são um investimento no futuro do país. Nesse sentido, o trecho da entrevista da ministra Anielle Franco, da Igualdade Racial, veiculada no Jornal Nacional, foi extremamente infeliz e caminha na contramão deste entendimento. Fica a impressão de que este assunto não é prioridade no Governo Federal. A prioridade parece estar no Bolsa-Empresário e no Bolsa-Latifundiário, através de subsídios bilionários e créditos generosos, e em outros setores que captam o orçamento público a fim de saciar interesses corporativistas.
Entretanto, a igualdade racial não é uma pauta isolada: está no cerne do desenvolvimento econômico, da redução da violência e da construção de uma democracia de verdade. No fim das contas, a questão é simples: queremos um país que olhe para o passado e repita seus erros ou que assuma a coragem de construir um futuro mais justo?