Estadão Conteúdo
O programa de residência da USP nesta área foi criado na década de 1990 por Angelita e, hoje, tem como única residente mulher Aline. Nas entrevistas, as duas comentam os desafios e as vitórias de estar em uma especialidade na qual os homens ainda são maioria.
INFÂNCIA
Angelita – Nasci na Ilha de Marajó, no Pará, mas vim para São Paulo aos 7 anos com meus pais e cinco irmãos. Minha família decidiu se mudar após meu irmão mais velho, de 14 anos, morrer de apendicite aguda. Na época, meus pais entenderam que, se continuássemos lá, os demais filhos morreriam também por falta de assistência médica.
Aline – Nasci em Barbacena, no interior de Minas, mas morei boa parte da vida numa cidade ainda menor, Santa Bárbara. Minha mãe é professora e meu pai, funcionário público. Ninguém da família tinha seguido carreira médica antes de mim.
ESCOLHA PELA MEDICINA
Angelita – Minha decisão de fazer Medicina foi meio por acaso. Quando saí do ginásio (ensino fundamental), podíamos escolher ir para o colegial comum ou científico, e eu escolhi o segundo. Lá, conheci outras meninas, que se tornaram minhas amigas, e elas planejavam fazer Medicina. Achei que poderia me dar bem na área.
Aline – Como sempre gostei muito de animais, inicialmente pensava em ser veterinária. Mas, conforme fui crescendo, percebi que gostava mesmo de cuidar de pessoas. Me sentia bem quando ajudava alguém. Além disso, sempre tive preferência pelas disciplinas de Biologia no colégio.
REAÇÃO DA FAMÍLIA
Angelita – Quando falei para os meus pais que queria ser médica, eles não gostaram muito, não. Tinha duas irmãs mais velhas que eram professoras e eles me perguntaram por que eu não seguiria o mesmo caminho do magistério, que era um curso mais curto e, segundo eles, mais compatível com o sexo feminino. Mesmo assim, não mudei de ideia.
Aline – Meus pais ficaram muito animados quando disse que queria seguir essa carreira de médica. Meu pai me incentivou e minha mãe disse que eu deveria fazer o que quisesse mesmo.
APROVAÇÃO NO VESTIBULAR
Angelita – O resultado do vestibular não saía no jornal ou na internet. Os candidatos e as famílias se reuniam no saguão da Faculdade de Medicina da USP e o secretário lia o nome dos aprovados. Isso foi em 1951. Quando chegou no oitavo lugar da lista e meu pai ouviu o nome Angelita, ele quase desmaiou. Acho que foi aí que ele entendeu o que aquilo representava, ainda mais para uma mulher. Éramos 80 na turma e só 11 eram moças.
Aline – Desde o início do ensino médio eu já pensava no vestibular, mas não consegui passar logo após o 3.º ano. Fiz um ano de cursinho e fui aprovada na Universidade Federal de Juiz de Fora em 2009. A turma era bem equilibrada entre homens e mulheres.
ESPECIALIDADE
Angelita – Inicialmente eu achei que seguiria alguma especialidade clínica: cardiologia ou gastro. Mas no sexto ano da faculdade, no internato, um residente me mandou costurar uma barriga e fiz aquilo com tanta facilidade que me deu um estalo: 'quero ser cirurgiã'.
Aline – Sempre gostei muito da parte de anatomia, especialmente do abdome. Quando tive aulas sobre isso na graduação, soube que era aquilo que queria fazer. Decidi me especializar na área de coloproctologia porque é uma especialidade extremamente ampla, na qual é possível tratar pacientes com diferentes quadros.
RESIDÊNCIA EM CIRURGIA
Angelita – Prestei a prova para residência em cirurgia geral no Hospital das Clínicas, mas só havia oito vagas. O chefe do programa me disse: 'você vai casar, vai desistir da cirurgia e vai ter tirado a vaga de um rapaz'. Ele não queria me aceitar, mas eu argumentei que, se eu tinha sido aprovada no curso de Medicina, eu tinha o direito de seguir a especialidade que eu quisesse. Fui aprovada. Era a única mulher residente entre sete homens.
Aline – Depois de me formar em Minas, prestei provas de residência em vários locais de São Paulo porque a Medicina daqui é referência para o País. Passei na residência de cirurgia geral do Hospital das Clínicas e, agora, estou me especializando em coloproctologia.
PRECONCEITO
Angelita – Depois que entrei na residência, não tive muitos problemas de preconceito com colegas e professores, mas sempre sentia que eu tinha de trabalhar igual ou mais do que eles para provar meu valor. A maior desconfiança, na verdade, vinha dos pacientes. Às vezes eu ia avisá-los que a cirurgia seria realizada no dia seguinte e eles me perguntavam: 'mas o médico que vai me operar não vai vir me ver?'.
Aline – A área cirúrgica ainda é muito masculina. Cheguei a ser questionada, quando estava prestando concurso de residente, se eu não desistiria. Na minha turma de cirurgia geral eram 48 residentes, mas só havia 11 mulheres. Ainda existe uma crença de que a mulher é frágil e não dá conta da pressão. Mas depois que entrei, sempre fui respeitada pelos colegas e pelos chefes. Os pacientes que ainda ficam desconfiados às vezes em serem operados por uma mulher.
ESPAÇOS
Angelita – Fui a primeira professora mulher de cirurgia na Faculdade de Medicina da USP, sou membro honorário de várias sociedades médicas europeias e americanas e vejo que muitas mulheres se sentem incentivadas a seguir carreira de cirurgiã quando veem esses exemplos.
Aline – Nós, mulheres, já conseguimos muita coisa, tenho várias amigas cirurgiãs, mas ainda vejo poucas em cargos de chefia, por exemplo. Sempre que vejo uma menina interessada em seguir a área, incentivo. Temos de nos encorajar.
Prêmios
Detentora de diversos prêmios e títulos nacionais e internacionais, a cirurgiã Angelita Habr-Gama recebeu uma homenagem especial no mês de janeiro. Foi a primeira personalidade em 60 anos a estampar a capa de uma das mais importantes revistas científicas do mundo na área de coloproctologia, a "Diseases of the Colon & Rectum", periódico da Associação Americana dos Cirurgiões de Cólon e Reto.
A publicação trouxe um artigo sobre a vida e a trajetória profissional da médica brasileira. Nos cerca de 60 anos de carreira, Angelita já recebeu mais de 50 prêmios científicos e foi nomeada membro honorário de oito associações mundiais. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.