No início dos anos 60, o livro “Capitalismo e Liberdade” trazia em evidência a máxima de que a principal responsabilidade das empresas era gerar lucros. Escrito por um dos precursores da Escola de Chicago e Prêmio Nobel, Milton Friedman, o conceito estimulava um modelo cada vez mais centrado nos acionistas, com uma visão de baixo risco e curto prazo. Tempos depois, em setembro de 1970, o mesmo autor escreveu um artigo polêmico para o The New York Times onde reforçava essa opinião e refutava as ideias de responsabilidade social corporativa, que começavam a surgir na época. Segundo ele, empresas que pensavam assim não condiziam com um mundo livre e eram “marionetes” de forças intelectuais que flertavam como o socialismo. Friedman afirmava que "o negócio do negócio é o negócio" (the business of business is business), ou seja, que apenas gerar lucros e defender o interesse dos acionistas é o que torna a empresa bem sucedida, cabendo a cada individuo, em suas escolhas do dia a dia, a responsabilidade social e com o planeta.
Sabemos que a história evoluiu de maneira diferente. Se saltarmos de setembro de 1970 para o mesmo mês de 2008, chegamos a uma grande crise que foi justamente causada por essa centralidade do capitalismo para investidores, chegando a uma quase falência do sistema financeiro. Os reflexos dessa crise reverberam até hoje em um processo claro de estagnação. O mundo ficou cada vez mais desigual e, em muitos casos, minando a qualidade de vida dos cidadãos. Além disso, confirmado pelos estudos em nível global da Edelman Trust Barometer, essa fragilidade social aumentou a desconfiança nos meios de comunicação, nas lideranças, nas empresas, bancos, governos e, especialmente, na democracia, refletindo hoje no grande número de regimes de extrema direita em grandes economias mundiais, que colocam em cheque alguns regimes democráticos. As crises éticas que foram acontecendo em todos os níveis, ano após ano, contribuíram para esse comportamento da sociedade.
Em 2020 estamos passando por mais uma crise sem precedentes. Dados da Organização Internacional do Trabalho mostram que aproximadamente 400 milhões de pessoas perderam seus empregos nos últimos meses no mundo todo, além disso os índices de falências de empresas tem aumentado todos os dias. As desigualdades são marcantes, já que vivemos em um mundo onde 26 pessoas possuem mais riqueza do que metade de toda a humanidade. O Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo e o segundo em concentração de renda entre o 1% mais rico – ficando atrás apenas do Catar -, ou seja, o 1% mais rico concentra 28,3% de toda a renda do país. Desigualdades raciais e de gênero também potencializam toda essa situação globalmente.
O fato é que o capitalismo atualmente é o único sistema socioeconômico do planeta, especialmente pela sua capacidade de conexão e relacionamento com o mercado e a política. Existem diferentes visões sobre o modelo, sejam elas positivas e negativas. É inegável que ele estimulou um rápido crescimento em relação a renda e riquezas, saúde e prosperidade, influenciando inclusive a expectativa de vida da população. Por outro lado, é um sistema extremamente desigual, que polariza a sociedade e, segundo alguns autores, prejudica a democracia, pois diminui o debate e o respeito por diferentes opiniões.
Entendendo todo esse panorama e observando o mundo que estamos vivendo, é consenso que o modelo como está já não se sustenta. Segundo o Fórum Econômico Mundial são três os tipos de capitalismo. O primeiro é o capitalismo de Estado, onde o responsável por gerir o rumo da economia é o setor público; o segundo é o capitalismo centrado apenas nos acionistas, voltado a maximização do lucro; e o terceiro é o capitalismo de stakeholders. Os dois primeiros tipos citados estão enfraquecidos ou fadados ao fracasso, entendendo a dinâmica da sociedade atual. Além dos problemas já mencionados, causados por esse tipo de visão, os interesses dos acionistas tem mudado. O olhar para o futuro, como uma visão de perenidade e sustentabilidade passam a fazer parte da agenda de investimentos.
Isso leva uma reflexão para a terceira opção. Há alguns anos vemos alguns movimentos que estimulam essa influencia das partes interessadas no processo de tomada de decisão das empresas. Em 2019, CEOs e diretores de 180 grandes empresas norte americanas, como Apple e Walmart, comunicaram que o capitalismo voltado para os acionistas deveria acabar e que seria necessário levar em conta o interesse dos stakeholders, investindo em seus funcionários, protegendo o meio ambiente e lidando de forma justa e ética com seus fornecedores – ou seja, o sucesso da empresa atrelado a prosperidade da comunidade e do planeta.
Esse ano, um movimento chamado Imperative 21, que tem como alguns de seus membros fundadores o B LAB e o movimento Capitalismo Consciente, procura tracionar essa mudança necessária, conectando as lideranças empresariais às políticas públicas. As seis organizações fundadoras representam mais de 72000 empresas em 80 países, e U$ 6,6 trilhões em receitas. A ideia do grupo é estimular mudanças sistêmicas na economia através do compartilhamento de ideias e da inovação.
Adaptando um velho ditado, “de boas intenções o mundo está cheio”. Essas manifestações de líderes empresariais, governos e nações em relação a temática são importantes e pertinentes, mas precisam partir para a ação. Olhando para o panorama elencado pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, vemos que muito ainda precisa ser feito para atingirmos um planeta mais inclusivo e justo para todos. Reinventar o capitalismo não é uma tarefa fácil. É necessário refletir, discutir e assumir responsabilidades. A forma com que chegamos até aqui não vai nos levar muito mais longe. A grande questão é: sairemos dessa crise atual fortalecidos e transformados ou tudo vai voltar ao “normal”?
*Gustavo Loiola é Mestre em Governança e Sustentabilidade e supervisor de Sustentabilidade e Relações Internacionais no ISAE Escola de Negócios, responsável por ações alinhadas com a Organização das Nações Unidas (ONU).